Crônica de José Fernandes: “Réquiem para Teresa”

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TERESA de Jesus Fernandes, minha mãe, já detinha o sobrenome Fernandes antes de se casar com o meu pai, também Fernandes. Mas eles me diziam que não eram parentes, que pertenciam a etnias diferentes. Acreditando nesse não parentesco, consideramo-nos livres, eu e minha irmã, por não conduzir, no nosso código genético, os males que, dizem os cientistas do ramo, tornam-se portadores os descendentes de parentes muito próximos, casados entre si.

Pessoa simples, criada num pequeno povoado, minha genitora aprendeu a ler em idade adulta, e a escrever em seis meses, para melhor se comunicar comigo, estudante na capital do Estado, e orientar os meus primeiros passos numa cidade grande.

Prendada, sabia ser mãe. Rigorosa ao seu modo, jamais alimentei rancores por ela me ter “disciplinado” com rigor, aplicando-me boas surras quando, em criança, passava o dia brincando na rua e não me preparava para a aula do dia seguinte. Amei-a, acima de tudo, mesmo por ocasião de nossa desavença, quando me proibiu de namorar uma prima legítima.  

Com esse introito, quero mesmo é contar como ela nos deixou muito cedo, aos 58 anos. Tinha uma vida normal, dona de casa exemplar, trabalhadora infatigável até o dia em que, ao visitá-la no interior, notei que seu calcanhar esquerdo tornara-se de cor roxa escura, embora ela entendesse que devia ser em consequência de talvez haver furado o pé, descalça no quintal. Mas me preocupei; senti, no íntimo, alguma suspeita de coisa séria.

Por insistência minha e do meu pai, conseguimos trazê-la a São Luís, e o médico Lauro Jacinto, olhando-lhe o pé, mesmo sem exame minucioso, chamou-nos ao lado, dizendo tratar-se ali de uma gangrena, em fase de decomposição da carne, predisposta, após os exames de praxe, a um tratamento cirúrgico, mediante amputação do pé – caso de diabete incontrolável – doença silenciosa, quase imperceptível no início, que ainda hoje acomete uma parte da população brasileira e mundial, inclusive este que vos escreve.

Não demorou muito, foi ela submetida à amputação do membro afetado e, três meses depois, da perna inteira até o fêmur.

Seu estado geral agravou-se. Todos os recursos médicos disponíveis na época foram empreendidos, sem nenhum êxito, e sua vida foi-se extinguindo, paulatinamente, no decorrer de seis meses. Assim registrei os seus últimos instantes:

      Solitário e lacrimante,

      Numa triste madrugada,

      Eu velava minha mãe,

      Sofrida, exaurida e inconsciente

      No leito hospitalar.

      Pleno de ternura, repentinamente,

      Uma incontida vontade dominou-me,

      Como uma irresistível antevisão,

      De recomendar aos céus o seu espírito.

      Fixando o olhar e o pensamento

      Na sua esquálida figura, proferi,

      Naquele instante inolvidável,

      Longa e contrita prece,

      Um inspirado bendito para conduzi-la

      À divina paz dos caminhos eternos.

       E logo ao concluir aquela oração,

       Vi que minha mãe, serenamente,

       Exalara o último suspiro.

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