CACHORRO GRANDE, com feição de brabo, desconhecido, solto e sem coleira faz medo até aos mais afoitos.
Morando há anos num recanto calmo, conhecido como Sítio Campinas, do bairro São Francisco, nesta Ilha repleta não só de levezas, um dia, bem cedinho, acompanhei, pela redondeza, meu filho, de sete anos, que pedalava uma bicicleta.
Ao regressarmos, da casa defronte da nossa saiu um cachorro imenso, de causar medo a qualquer valente, que, sem mais nem menos, partiu em nossa direção, para atacar-nos. Rapidamente, coloquei o meu filho atrás de mim, apossei-me da sua pequena bicicleta e a segurei à nossa frente, em atitude de defesa.
O cachorro, latindo, esganiçadamente, ameaçava abocanhar-nos, e eu procurava repeli-lo com a bicicleta, em movimentos de vai e vem. Quase exaurido pelo cansaço, gritei para que alguém o levasse dali, temendo o iminente ataque, pois o bicho era de grande porte, agressivo, e por certo nos causaria sérios danos.
Depois de eu muito gritar, alguém da casa do cachorro saiu e chamou-o, e ele se foi. Sou cardíaco, diabético e nervoso, de metro e meio de altura, mas, mesmo assim, consegui ameaçar, em voz alta: “se esse cachorro nos atacar novamente, dou-lhe um tiro” (cá pra nós, com um revólver que eu nunca tive). Entrei na minha casa, esbaforido, tomei um copo d’água, meu filho quase desmaiado, sem sangue na face.
No dia seguinte, enfrentei minha jornada de trabalho e, de volta ao lar, ao anoitecer, antes de eu sair do carro, um homem alto, corpulento, aproximou-se, e, raivoso, asperamente perguntou-me, num português misturado com inglês: “É verdade que você prometeu dar um tiro no meu cachorro? ”. Eu, revoltado com o que havia me ocorrido no dia anterior, quase gritando, lhe respondi, ainda de dentro do carro: “É verdade sim. Quer ver? ”. Disse isso fazendo menção de sair do veículo como se fosse sacar uma arma – como já disse, inexistente.
Nesse momento, a mulher do gringo, que o seguira, agarrou-o com força e levou-o à sua casa, logo do outro lado da rua.
Ao amanhecer do outro dia, cedo, saí e fui até a esquina, receoso de que o estrangeiro estivesse me esperando de arma em punho, mas o vigia noturno informou-me que, durante a madrugada, ele e a família se mudaram, com cachorro e tudo. Com certeza, ficara com medo do revólver … que eu não possuía.
Mas, como disse no início, realmente tenho medo de cachorro grande, desconhecido e solto, sem coleira. No entanto, ao mesmo tempo, tenho histórias de inauditas relações com esses animais, a começar por Duque, um amoroso cão que acompanhava o vigia da nossa rua e um dia abandonou-o para ser cuidado pelas minhas filhas e filho.
Indo adiante, faço questão de contar a façanha de um querido cão de rua, adotado pela minha família, que, na minha juventude, me acompanhava, em Arari, à noite, até o outro lado de uma ponte velha de madeira, ao lado do comércio de Jorge Salomão, e lá ficava, deitado, até a madrugada, à espera do meu retorno das grandes noitadas, porque intuía que eu podia ser atacado, naquele local, por algum desafeto.
E numa madrugada, quando eu regressava de uma festa, um mal elemento, de tocaia e armado de cacete, partiu para agredir-me, mas foi atacado pelo meu valente vira-lata, que o pôs em debandada. Esse frustrado agressor foi identificado, perdoei-o e nos tornamos amigos.
Há algum tempo, tive intensa afeição por um lindo cachorrinho, de cor preta, amorosíssimo, que se mantinha cochilando aos meus pés, enquanto eu lia ou escrevia. Costumava levá-lo comigo para passear na praia. Certa vez desgarrou-se de mim, subiu para a pista da avenida Litorânea e foi atropelado por um automóvel. Quase morto, atirou-se aos meus braços, pedindo proteção, e, muito triste, levei-o para casa.
Morreu em seguida e foi carinhosamente sepultado no nosso quintal, numa aconchegante caixinha. Chorei por ele, escondido, porque nesse tempo eu, por implicância, ainda pensava, como na crônica de Fernando Veríssimo, que “macho que é macho não deve chorar”. Hoje, por convicção, sei que macho, que é macho, não tem motivos para não chorar.
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JOSÉ FERNANDES É MEMBRO DA ACADEMIA LUDOVICENSE DE LETRAS