Crônica de José Fernandes: “Os últimos helenos”

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São Luís O PRIMEIRO grande livro que li, ainda na adolescência, e me despertou para futuras leituras, foi da autoria do maranhense Coelho Neto, que, pela densidade de sua obra e no auge de sua glória, havia recebido, da Academia Brasileira de Letras, o título de “Príncipe dos prosadores brasileiros”. Só muito depois soube haver sido esse o escritor mais prestigiado do País, autor prolífero de mais de 90 livros dos mais variados gêneros, editados quase todos na Europa, nos últimos anos do século XIX até meados do século XX.

As primeiras referências sobre esse autor, quase não divulgado naquele tempo, soube-as pela leitura do livro de memórias de Humberto de Campos, que se referia a ele com a mais profunda admiração e respeito, enaltecendo-o como vernaculista maior, inclusive como orador, salientando: “O escritor é grande e maravilhoso. Só poderá, porém, medir-lhe a estatura quem tiver conhecido o orador, de eloquência incomparável”.

Salientando o dom retórico de Coelho Neto, outro ilustre maranhense, Luso Torres, referiu-se a ele dizendo que “nunca vira um homem, um tribuno, transfigurar-se tanto, acima da multidão embevecida”. Não era, pois, sem razão que chegara a ser o mais requisitado dos oradores que se apresentavam em conferências pagas, nos salões de luxo da aristocracia, na antiga Capital Federal, no período em que a cultura literária vivera seu período áureo.

Os jornais da época registraram que em julho de 1899, Coelho Neto (então o mais brilhante deputado federal representante do nosso Estado na Câmara Federal), ao visitar São Luís, em julho de 1899, foi alvo de consagradora recepção dos seus conterrâneos: mais de mil pessoas acorreram para recebê-lo, desde que pisara o Cais da Sagração, desembarcado do navio que o trouxera do Rio; dezenas de oradores, representando várias classes sociais, se fizeram ouvir e, ele, agradecendo a marcante homenagem, proferiu o mais emocionante discurso até então ouvido pelos maranhenses.

Nessa ocasião, cita o livro “Terra Timbira”, de Clóvis Ribeiro de Morais, que Coelho Neto, cumprindo o seu programa de visitas, esteve na Biblioteca Pública do Estado e escreveu, em pouquíssimos minutos, no seu linguajar metaforicamente rebuçado, e deixou no livro competente, o seguinte registro:

“Esta é a grande colmeia. Aqui, nos seus alvéolos, vivem as abelhas que trazem da grande flora do Espírito Humano o mel sápido da inspiração e a cera da Sabedoria. Desfila o mel dourado das estrofes e os conceitos, feitos da cera casta que é a matéria-prima dos círios, dão luz ao altar do mundo, onde o Pensamento é o Deus uno, forte, criador, eviterno. Guarda, Aristeo, as abelhas serenas e aos que te pedirem mel ou cera, vai prodigamente dando, que assim praticas a mais meiga e salutar das misericórdias, qual é a de consolar e esclarecer os espíritos. Maranhão, 15 de julho de 1899”.

Ruy Castro, no livro Metrópole à Beira-Mar, com o subtítulo “O Rio moderno dos anos 20”, editado em 2019, cita Coelho Neto em 29 páginas, comenta dezenas de fatos que lhe são correlatos, entre eles, o de ter sido o primeiro a consagrar o Rio de Janeiro como “Cidade Maravilhosa”, numa crônica de 1908 para o jornal A Notícia.

Revela que o insigne maranhense tinha um grande desafeto, o escritor Lima Barreto que, segundo seus biógrafos, muito o invejava, não lhe perdoava o sucesso, a estima do público e dos colegas, e o acusava de escrever de maneira artificial, de enxergar no Brasil uma Grécia que nunca existira e de ser um “orador de sobremesa em banquetes para endinheirados”. Acrescenta que Lima falecera precocemente e coube àquele que tanto ofendera, Coelho Neto, redigir seu necrológio no Jornal do Brasil. Para surpresa de muitos, Neto pôs Lima Barreto nas alturas como escritor, qualificando-o como “Romancista dos maiores que o Brasil tem tido – observando com o poder e a precisão de uma lente, escrevendo com segurança magistral, descrevendo o meio popular como nenhum outro”.

Entre outras ocorrências, conta, ainda, Ruy Castro, no seu denso livro de 496 páginas, que quando os jovens beletristas, partícipes da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, estiveram junto com seus acólitos para prestigiar a conferência revolucionária de Graça Aranha intitulada “O espírito moderno”, na Academia Brasileira de Letras, considerando-a uma “reunião de espectros, um túmulo de múmias, um império de todas as velhices”, proclamando-lhe a morte, esses moços gritaram “morra a Grécia” e carregaram o conferencista nos ombros. E aí, “dois partidários da Academia, que admiravam os conservadores – os irmãos Rafael e Marques Pinheiro – retaliando os rebeldes, levantaram o minúsculo Coelho Neto nos ombros e fizeram-no desfilar pelo auditório acadêmico. Neto, aproveitou-se de estar pela primeira vez fisicamente nas alturas, gritou: ‘Sou o último dos helenos! Sou o último dos helenos!”, numa tentativa de desagravar a antiga Grécia.

Como previra, ele foi, realmente, o último dos helenos, isto é, dos adeptos das avançadas concepções e da linguagem erudita herdadas dos sábios gregos.

Quando os modernistas escreveram que era preciso “descoelhonetizar” o Brasil, Coelho Neto tinha certa consciência disso. Numa entrevista ao jornal A Rua, em 1914, admitiu que realmente exagerava ao escrever e iria debruçar-se sobre a sua obra para poder “podá-la”, desbastá-la dos “excessos de adjetivação meridional”.

Com as inovações dos estilos literários, seu prestígio perante o público foi paulatinamente arrefecendo, talvez porque, sendo uma criatura voltada para as coisas do espírito, sua alma estivesse acima das efêmeras ilusões gregárias.

Ainda hoje continuo a admirar a sua linguagem límpida e elegante – opinião compartilhada por ótimos críticos da atualidade, como Leonardo Affonso de Miranda revela no livro que escrevera em sua homenagem, editado em 2016 – Coelho Neto, um antigo modernista.

Mantenho a assertiva de que a sua literatura, essencialmente, continua incólume, eis que, com quase um século de sua morte, é de sua autoria – ele que dizia não ser poeta – o mais célebre soneto recitado, até hoje, em homenagem às mães. Ei-lo:

SER MÃE

Ser Mãe, é desdobrar fibra por fibra

O coração! Ser Mãe é ter no alheio

Lábio que suga, o pedestal do seio,

Onde a vida, onde o amor, cantando vibra.

Ser Mãe é ser um anjo que se liba

Sobre um berço dormindo! É ser anseio,

É ser temeridade, é ser receio,

É ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a Mãe goza é bem do filho,

Espelho em que se mira afortunada,

Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser Mãe é andar chorando num sorriso!

Ser Mãe e ter o mundo e não ter nada!

Ser Mãe é padecer num paraíso!

Seria uma deferência à Literatura Clássica se uma seleção de suas obras, mediante uma competente análise crítica, fosse reeditada sob a égide de alguma intimorata instituição cultural, para brindar aos patrícios do nosso tempo com a leitura desse artista da palavra, nascido em Caxias-MA, a 21 de fevereiro de 1864, e falecido no Rio de Janeiro, a 28 de novembro de 1934.

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