Crônica de José Fernandes: “As cartas”

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Capa do livro “Todas as Cartas”, que reúne correspondências escritas por Clarice Lispector ao longo de sua vida

São Luís HOJE QUASE ninguém se comunica por meios de cartas – mensagens longas ou curtas – que escrevíamos, quase sempre à mão, caprichando na caligrafia, para as pessoas residentes em outras localidades, e usávamos o correio e o telégrafo como únicos meios de comunicação. Alguns, mais sofisticados, escreviam-nas utilizando máquinas de escrever, hoje em desuso, mas tão úteis e famosas que havia diplomação solene para os concludentes dos cursos de datilografia.

Passando a estudar na Capital, minhas namoradas se comunicavam comigo por cartas emotivas, enviadas quinzenalmente por intermédio de pessoas que viajavam por via fluvial (barcos, lanchas e batelões).

Dos anos de 1970 até antes de iniciar o novo século, tive uma intensa correspondência epistolar com três bons amigos, residentes em cidades diversas. O primeiro chamava-se Benedito Gonçalves de Morais – um cidadão com mais idade que a minha, intelectual que nunca frequentou escola, residente em uma cidadezinha distante. Suas cartas, em linguagem apurada, recheavam-se de inteligente humor; e trechos de um compêndio que vinha escrevendo sobre os encantos da história do mundo (obra interessantíssima, com mais de 500 páginas, lida por mim, e jamais publicada por ele), e densos artigos, que ele redigia e eu encaminhava para os jornais O Imparcial e Diário de São Luís.

Mas o meu mais antigo correspondente por meio de cartas manuscritas foi Clóvis Ribeiro de Morais, nascido em Pinheiro/MA e residente em Brasília/DF; escritor e jornalista, colaborador do jornal centenário Cidade de Pinheiro, autor, entre outros, do livro Terra Timbira, a mais intensa pesquisa biográfica sobre notoriedades maranhenses no campo da literatura, das artes e das ciências no Maranhão, nos séculos XIX e XX, obra lançada na década de 1970. Clóvis era abnegado maçom e espírita. Apesar da nossa grande diferença etária, mais que amigos, éramos irmãos de ideal. Suas epístolas constituíam verdadeiras mensagens de elevado sentido moral.

Outro amigo com quem mantinha farta correspondência epistolar chamava-se Raimundo Sousa Fernandes, ou Caiçara, como o chamávamos. Fomos contemporâneos. Fizemos política juntos, em Arari (eu o ajudei a eleger-se prefeito da nossa terra e ele me ajudou a tentar eleger-me em malograda eleição para o mesmo cargo). Leitor pertinaz, foi um cidadão instruído, orador e palestrante. Ao invés de escrever textos e editá-los, escreveu cartas, bonitas e inspiradas, dirigidas a mim e a outros amigos. Publicou apenas um pequeno trabalho literário, inserido na revista Hinterland, editada por mim.

As cartas do passado, trocadas entre pessoas cultas (literatos, cientistas e memorialistas) têm sido objeto de interesse público entre estudiosos e curiosos em conhecer nuanças do passado, constantemente publicadas em livros imemoriais, de densa conotação histórica, como as Cartas Jesuíticas, de Azpilcueta Navarro e outros, uma coletânea em quatro volumes, cada um com mais de 500 páginas, fértil documentação sobre o Brasil nascente.

Um outro livro, contendo cartas íntimas, escritas por Fernando Pessoa para um amigo poeta, de Lisboa para Paris, constitui uma leitura curiosa e instrutiva.     

No livro Cartas na Mesa, o escritor Fernando Sabino transcreveu centenas delas, trocadas, semanalmente, de várias partes da Europa e dos Estados Unidos entre ele e os seus amigos, no Brasil, escritores Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, no transcorrer dos anos de 1943 a 1992, cartas formidáveis, transbordantes de críticas, ironias e jocosidades cobrindo um longo período da vida cultural brasileira.

No dia em que redijo este texto, 6 de junho de 2021, tomo conhecimento do livro Todas as Cartas, com mais de 800 páginas, redigidas pela escritora Clarice Lispctor, no decorrer dos anos de 1940 a 1977, e permutadas entre amigos, entre os quais João Cabral de Melo Neto e outras figuras de sua intimidade.

Como se percebe, as cartas voltaram a circular, transformadas em letras de forma, velho costume rejuvenescido como curiosidade, pelos vasculhadores de raridades literária.

Sabemos que hoje, para nos comunicarmos à distância, usamos meios eletrônicos, rápidos, simultâneos e sumários, diferentes das longas cartas, geralmente manuscritas, dos tempos que se foram, como esta, que você lerá, nas páginas seguintes.

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JOSÉ FERNANDES é autor de 19 livros, entre os quais “Gente e Coisas da Minha Terra”.

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