SE AINDA não falei sobre dormir sonhando com pessoas vivas mas de familiaridade remota, vou falar agora, eis que, depois de “certa” idade, a gente sonha com pessoas que não vemos há 30, 40 ou 50 anos.
Foi o que aconteceu ontem, ao sonhar com um amigo que não vejo nem falo em torno de quatro décadas, e aproveito a chance para rememorar, não o sonho, mas um pouco do roteiro dessa pessoa nada vulgar.
Não revelarei seu nome exato, de vez que ele está vivo, e bem vivo, e não tenho autorização para expor ao público o seu considerável trajeto. Aqui o chamarei de Armando, nome fictício, para facilitar a narração.
Conheci-o quando ambos éramos jovens, ele uns dois ou três anos a mais. Já era proprietário do único bar, coberto de lona, utilizável apenas nos fins de semana, existente no chão natural da praia Ponta da Areia, totalmente desabitada. Para se chegar lá, ia-se de canoa a remo, barco ou lancha motorizada, atravessando a larga embocadura do rio Anil, entre a Beira-Mar e a extremidade da península arenosa, no outro lado. O bar era rústico, precário, não tinha mesa nem cadeiras, mas nele se tomava cerveja gelada com peixe frito e, às vezes, até acompanhado de arroz de cuxá, ao invés da sempre presente farinha d’água que, mesmo assim, era servida com presteza pelo dono solícito.
Esse ativo cidadão, simultaneamente a essa atividade de dono do bar, era conferente de carga de navios mercantis que ancoravam ao largo da Praia Grande, tornando-se, inclusive, diretor do importante sindicato da classe: em face dessa condição, esteve nos Estados Unidos, a convite, passando dias de soberba mordomia às custas do Tio Sam. Essa façanha foi minuciosamente contada por ele, no seu regresso, enquanto bebericava conosco, reunidos no hotel de D. Santinha, na praia do Caju, num prédio histórico que já foi Capitania dos Portos e lar de um famosíssimo romancista maranhense.
Numa ocasião, já eu formado em Direito e pretendendo inteirar-me das novidades implantadas na Previdência Social com o advento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, matriculei-me num curso específico a respeito do tema, e lá estava, como eficiente instrutor da matéria, ninguém menos que o meu amigo Armando, a essa altura também professor, o mesmo Armando que, meses depois, encontrei no aeroporto do Tirirical, como funcionário público, do Infraero, talvez por concurso, pois inteligente ele jamais deixara de ser. Continuava, porém, surpreendentemente, como ativo conferente de bordo, diretor do sindicato e, até onde sei, dono do bar e constante caçador nas matas de Alcântara, onde chegara a ser confundido com uma onça e levara alguns caroços de chumbo da espingarda do companheiro de caçada.
Depois soube que esse instável personagem, a essa altura já meio coroa, havia concluído o curso de Medicina e, fato curioso, disseram alguns indiscretos que, sentindo-se incomodado com sua arcádia dentária, uma vez que não seria correto um doutor-médico com dentes estragados, fora ao dentista e pedira a este que os extraísse, de uma só vez, e os substituísse por duas portentosas próteses, no que fora prontamente atendido.
A posteriori, por intermédio de um amigo comum, soube novas notícias das andanças desse protagonista, agora, inclusive, médico. Nessa conjuntura, o competente discípulo de Esculápio, de tanto estar em Alcântara em razão de seu vício de caçador, e para se sentir mais próximo das matas, resolvera ali se estabelecer, com consultório e residência. Atencioso e competente, tornara-se, logo, clínico e diretor do hospital local e, ao mesmo tempo, com carisma, simpatia e discernimento, ingressara na política, elegendo-se, de imediato, prefeito daquela histórica cidade.
Por algum tempo, perdi-o de vista e de lembrança até que um dia, lendo um dos nossos jornais, fiquei sabendo que o autor de uma crônica nele inserida, um conceituado acadêmico, estivera veraneando numa ilha paradisíaca, a convite do proprietário da maravilhosa ínsula, exatamente o dr. Armando, seu amigo, (e meu, direi), que nela vive e reina, nababescamente, acalentado pelo som reconfortante do farfalhar das folhas dos mais de 10.000 pés de coqueiros que ali plantara. Adicionara, pois, mais outra atividade no seu já vasto currículo – a de próspero agricultor e, de quebra, rei absoluto de uma fecunda ilha.
Agora, com esse último detalhe, descubro que além de ter traçado o perfil de um homem versátil, de uma só cajadada também desvendei o meu sonho de ontem.
Um sonho – quem sabe – ocorrido com a finalidade de chamar minha atenção, uma espécie de premunição que, bem interpretada, pode ser um aviso, uma comunicação para que eu fique sabendo que quando estiver saturado das ruindades na condução do Brasil, disponho de uma ilha para refugiar-me – ilha sem rádio, jornal, televisão nem telefone, plantada distante do continente, sob os céus do Atlântico, onde posso viver sossegado. E com uma vantagem: como na Pasárgada do poeta Manuel Bandeira, lá eu serei amigo do rei.
José Fernandes é escritor e autor, entre outros, do livro “Ao longo do Caminho”.