Crônica de José Fernandes: “No despontar da adolescência”

0comentário

MENINOS COMO eu, de dez a onze anos, moradores da cidade ribeirinha, ligada ao mundo apenas pelo caminho das águas, onde não havia brincadeiras a não ser de banhos de rio, pião, borroca e jogo de bola de pano ou de bexiga de boi, não tínhamos muito sobre o que conversar; quando muito, discutíamos sobre qual a lancha mais veloz entre as dezenas que transitavam pelo nosso porto.

Entregue a essa rotina, a esses prazeres ingênuos, ignorava quaisquer outros divertimentos. Isso até antes de aportar na nossa cidadezinha uma família de cearenses bem viajados, entre os quais um menino de minha idade, o Zé Alves, vivo e articulado, que se tornou meu instrutor de outros passatempos e peripécias, e me fez tomar conhecimento de coisas das cidades grandes, onde vivera longos períodos.

Esse meu novo amigo me despertou para um mundo novo. Contava, minuciosamente, como se divertiam as crianças nos lugares por ele percorridos, sua frequência aos carrosséis, às rodas-gigantes, aos cinemas com filmes de caubói e de espadachim. Sabia o nome de todos os grandes artistas da época, atores e atrizes, suas cenas românticas e enredos mirabolantes.

As aventuras desses filmes me deleitavam, despertavam minha curiosidade e me exsurgiam para os experimentos da adolescência, até então adstrita a um ambiente onde nada acontecia, a não ser, lá uma vez ou outra, uns velhos circos mambembes, com representações seguidamente repetidas. 

Saíamos, eu e o Zé Alves, pelas cercanias da cidade, colhendo, furtando e comendo sapotis, mangas e criviris, chupando cana nos engenhos, arranjando novas amizades e os primeiros contatos com garotas de nossa idade. Envolvia-nos em pequenas disputas de corpo a corpo, simulando brigas, não levadas a sério. Minha visão tornou-se mais ampla, meu ambiente mental alargou-se, ultrapassando as fronteiras locais.

Vale destacar que nossa convivência era sadia. O colega de andanças e sonhos infantis, apesar de experiente e engenhoso, jamais me induziu a procedimentos menos dignos ou perniciosos. Inteligente e falante, metia-se nas conversas dos adultos, opinando com desenvoltura, mas não era desrespeitoso. Ensinou-me muitas coisas, nenhuma tendente ao mal. Pena que tudo isso durou pouco mais de um ano.

De repente Zé Alves ausentou-se do nosso convívio. Quando senti sua falta, perguntei às pessoas próximas e estes me informaram que ele estava, junto com os seus, de mudança para outra cidade, às margens de outro rio; que uma lancha com batelão de reboque já houvera recolhido os móveis e utensílios da sua família, para seguir viagem.

Aí me lembrei o que ele certa vez me revelara: seus genitores eram seres inquietos, um tanto nômades – estavam sempre buscando novas cidades, meio ciganos.

Procurei-o e, por fim, só vi ao longe a lanchinha que o levava e levava sua família viandante dobrando a curva do rio, rumo a um novo destino.

Fiquei, assim, sem o experiente companheiro de infância vadia, que me ensinara a amadurecer, despertando minha imaginação para caminhos além daquele meu ambiente meio perdido entre rio, lagos, igarapés e pororocas.

José Fernandes é membro da Academia Ludovicense de Letras e autor, entre outros, do livro “Ao Longo do Caminho”.

Sem comentário para "Crônica de José Fernandes: “No despontar da adolescência”"


deixe seu comentário

Twitter Facebook RSS