Crônica de José Fernandes: “Alcântara, refúgio de um exilado”
UM DIA, num tempo em que o Brasil ainda não havia cedido parte do território de Alcântara, outrora portentosa cidade, para um projeto aeroespacial, encontrei ali uma figura exótica, com feitio de andarilho, que me despertou um certo senso de solidariedade, por me parecer um aventureiro livre, que estava a viajar por lugares sombrios, raramente visitados, como aquele tristonho escaninho do Brasil.
Era lá pelos anos de 1970. A urbe alcantarense, em ruína há mais de um século, vivia, realmente, um tempo de solidão. População escassa, nenhum movimento comercial e muito menos turístico, silêncio hierático de igreja abandonada, somente um templo religioso de pé e sem frequência – uma paróquia sem padre. O hotel, onde eu e minha mulher éramos os únicos hóspedes, encontrava-se praticamente desativado – uma vantagem para nós, adeptos da calma e do silêncio.
Ave fora do ninho, o personagem que chamou minha atenção praticamente não falava com ninguém, mas do dono de uma quitanda na beira do porto, onde o moço se abastecia de cigarro, pinga e tira-gosto de peixe-frito – uma das poucas pessoas locais com quem se comunicava – colhi a informação de que o mesmo fora passageiro do barco a vela denominado “Mensageiro da Fé”, que fazia a linha São Luís-Alcântara. Teria vindo de longe diretamente para a “Cidade Monumento”.
O quitandeiro informou, ainda, que o itinerante arranjara amizade com uns pescadores e com eles saía para pescar, ajudando no que lhe era possível ajudar, conversando, e deles comprando, por bons preços, alguns baseados, fumados conjuntamente – hábito comum entre os trabalhadores do mar, com os quais adquirira alguma intimidade, homiziando-se na casa de um deles, sentindo-se à vontade naquele ambiente humilde.
Um dia o vi sentado num dos bancos do largo São Matias, cismando, olhar distante, como se estivesse fixado em outras paragens. Senti, à distância, fraterna simpatia por aquele isolado e exótico visitante, mas, terminado o meu veraneio, retornei à minha rotina de trabalho, na capital, e nunca mais o avistei; esqueci-o por longo tempo.
Anos depois, como leitor inveterado de temas incomuns, comprei em um sebo da Feira da Praia Grande, em São Luís, um livro de relembranças, que me chamou a atenção, editado no Rio de Janeiro. Lendo-o, com surpresa, verifiquei que o autor falava de sua estada, em condição de anonimato, na cidade de Alcântara, na mesma época em que lá estive, e descrevia lugares, paisagens e pessoas, tais como eu então observara, inclusive referia-se a um quitandeiro, como o acima lembrado.
Contava, no seu livro, que, tempos atrás, passara uns dias na velha cidade, vindo de Madri, onde estivera exilado, e chegara clandestino ao Brasil, refugiando-se exatamente naquele burgo bem isolado, pouquissimamente frequentado, como necessitava, naqueles dias.
Revelava ter gostado da placidez e da solidão da pequena cidade, das suas ruinas, haxixes e camarões, e pensara até em nela morar por um longo tempo caso não tivesse alguns projetos de vida a realizar de imediato.
Realmente, aquele viajante – dele soube depois – com certeza realizou seus projetos: tornara-se escritor, jornalista e político conceituado, deputado federal atuante, combativo e reeleito várias vezes, e candidato a governador do Rio de Janeiro. Desvendei também o seu passado: tempos antes do exílio fora líder estudantil rebelde e aguerrido, um dos sequestradores de um embaixador americano trocado por jovens companheiros, prisioneiros em vias de tortura pela quartelada de 1964.
Para alguns desavisados, até hoje aquele meu quase vizinho de Alcântara dos velhos tempos era ou é considerado um homem excêntrico, e até perigoso. Para outros, como este cronista, que o vem seguindo de longe, é um idealista e ainda sonhador, defensor de ideias libertárias – refiro-me, evidentemente, ao escritor e jornalista Fernando Gabeira.
———-
José Fernandes é membro da Academia Ludovicense de Letras, autor, entre outros, do livro “Ao Sabor da Memória”.