São Luís – É na noite desta sexta-feira (23) o lançamento do livro “O crime do desembargador Pontes Visgueiro”, na Livraria Amei do São Luís Shopping. A obra é de autoria do juiz de Direito José Eulálio Figueiredo de Almeida.
A história envolve um homem idoso e uma adolescente que um dia se conhecem casualmente em uma das ruas de São Luís, capital da província do Maranhão, na segunda metade do século XIX, mais precisamente no mês de junho do ano de 1872. A partir desse encontro imprevisto, eles passam a manter um relacionamento amoroso e o mesmo tem um fim trágico.
Veja como o autor descreve a história:
“O provecto senhor chamava-se José Cândido Pontes Visgueiro e a jovem Maria da Conceição. Ele sexagenário. Ela uma menina de 13 anos de idade. Ele desembargador. Ela uma pobre rapariga. O destino colocara ambos frente a frente, pela primeira vez, na porta da casa do velho celibatário, quando este a abriu para entregar uma esmola à garota que, na ocasião, se encontrava acompanhada de sua mãe.
Esse ligeiro encontro foi suficiente para Pontes Visgueiro informar-se de quem se tratava a adolescente e por ela enamorar-se. Não imaginava ele que essa jovem mulher lhe traria muitos problemas e que um dia, tomado de intensa paixão e insuperável ciúme, cravaria um punhal assassino várias vezes no corpo dela, levando-a à morte instantânea e brutal.
Um homem honrado, respeitável na sociedade maranhense pela sua inconspurcada posição de desembargador do Tribunal da Relação, por conta de um ciúme doentio, tirou a vida de Maria da Conceição, uma simples menina que, por empreitada da mãe proxeneta , ora se apresentava como esmoler, ora como prostituta. Por causa de sua vida dissoluta e pública a menor, ainda no alborecer da juventude, ficou conhecida como “Mariquinhas Devassa”.
Ajustado o compromisso de se relacionarem, Pontes Visgueiro passou a sustentar a jovem menina, pagando o aluguel da casa onde a mesma morava com sua mãe, bem como a custear outras despesas com roupas e vaidades próprias da idade juvenil.
O caso amoroso se consolidou e o experiente magistrado não conseguiu dominar sua paixão, nem os instintos libidinosos de Mariquinhas, que o traía com outros homens, dentre os quais um jovem militar e um estudante, com quem Pontes Visgueiro a flagrou mantendo relações sexuais em momentos diversos. Era o ingrediente que estava faltando para afetar o autocontrole do velho e celibatário desembargador que, a essa altura, contava com 60 anos de idade.
Contaminado por um ódio excessivo e por uma paixão avassaladora, Pontes Visgueiro retira-se para a província do Piauí, de onde traz consigo um escravo chamado Guilhermino , que seria seu comparsa no ato criminoso que intencionava praticar contra Maria da Conceição ao chegar a São Luís, no caso vingar-se da traição da rameira.
Sabendo que Mariquinhas era interesseira, mandou chamá-la à sua casa sob o pretexto de presenteá-la com joias que trouxera de sua viajem. A jovem meretriz, ainda insegura sobre qual seria a reação de Pontes Visgueiro, depois de traí-lo, leva consigo uma amiga e comadre chamada Thereza de Jesus com o intuito de proteger-se contra qualquer medida repressiva ou violenta do ancião. Debalde fora a estratégia de defesa de Mariquinhas, porque o sexagenário desembargador já havia urdido todo o plano criminoso que contaria com o auxílio decisivo do seu escravo Guilhermino, pois até o minúsculo caixão onde seria inumado o corpo da vítima já estava pronto.
Com efeito, a informação do chefe de polícia Miguel Calmon du Pin e Almeida, datada de 20 de agosto de 1873, narra detalhadamente os pródromos e o epílogo da ação delituosa, bastando para sintetizá-la a parte em que o experiente policial detalha que Guilhermino ocultou-se em uma saleta da casa, enquanto Pontes Visgueiro seduzia Mariquinhas a entrar e a sentar em um baú, ocasião em que a jovem meretriz, de acordo com a literal redação do relatório do chefe de polícia, é “agarrada pelo cumplice; grita, e este lhe abafa a voz, pondo-lhe uma toalha na boca. O desembargador aparece, chloroformisa-a, e depois de adormecida morde-lhe a face e vem para a sala, depois de alguma demora, com os braços regaçados, as mãos tintas de sangue e o punhal ainda sangrando”.
Consumado o homicídio era hora de ocultar o cadáver, o que foi feito pelo próprio Pontes Visgueiro, após mutilar o corpo da infeliz Mariquinhas e colocá-lo em um pequeno baú de madeira. Em seguida, o introduz dentro de um caixão de zinco, que fora previamente encomendado ao funileiro Antonio José Martins de Carvalho, tendo seu comparsa, compadre e amigo Amâncio José da Paixão Cearense (pai do poeta e compositor Catulo da Paixão Cearense) ido à casa do criminoso soldar as superfícies da referida urna funerária para eliminar a liberação de gases mefíticos decorrentes da putrefação cadavérica. Ajudou também a enterrar o caixão no quintal da casa (Ver página 90).
A partir desse cruento delito, ocorrido no dia 14 de agosto de 1873, a honra e a reputação de Pontes Visgueiro passam a sofrer abalos. Já não é mais visto como um distinto magistrado que desperta a atenção e o respeito da sociedade, mas como um simples homem apontado como autor de um horripilante crime de homicídio; como um aliciador de menores que manchou de sangue juvenil a toga do judiciário maranhense.
Pontes Visgueiro ainda arrastaria com ele para o banco dos réus, como copartícipes ou cúmplices, os escravos Guilhermino e Luiz, o tenente Antonio Feliciano Peralles Falcão e Amâncio Cearense , este, repita-se, pai do grande poeta e compositor Catulo da Paixão Cearense. No entanto, apenas ele fora julgado e condenado pelo Supremo Tribunal de Justiça em face do crime hediondo que vitimou sua amante Maria da Conceição. Peralles Falcão foi excluído do processo. Os demais responderam perante o tribunal do júri na província de São Luís e foram condenados.
No auto de qualificação e interrogatório de Pontes Visgueiro, perante o Supremo Tribunal de Justiça , o mesmo confessou que matou Maria da Conceição “porque a amava muito”. Com essa afirmação fica claro que o velho desembargador, que possuía 62 anos de idade, cometeu o delito movido por ciúmes e irrefreável paixão, fatores que vinculados à sua própria história de vida implicariam, em tese, na avaliação de sua conduta sob o ponto de vista da demência senil, coisa que os juízes da suprema corte imperial não levaram em consideração, notadamente porque não dispunham de elementos técnicos e legislativos à época.
Os eméritos conselheiros julgaram apenas o fato, e não o homem, apesar da brilhante tese de defesa e do eloquente discurso que o advogado de Pontes Visgueiro proferiu perante a corte suprema. Cremos que o Código Criminal do Império, desprovido do instituto da medida de segurança e de outras medidas protetivas ao infrator portador de suposta enfermidade mental, contribuiu para que outro desfecho não fosse dado pela suprema corte ao julgamento a que fora submetido o desembargador homicida. Além disso, não foi realizado qualquer exame de insanidade mental para aferir a existência de algum transtorno no carcomido desembargador.
Conforme se verá em tópico destacado deste livro, fosse a conduta de Pontes Visgueiro examinada sob o ponto de vista das inúmeras enfermidades que alegava possuir, no plano da psiquiatria ou da psicopatologia forense, o desfecho provavelmente seria outro que não a condenação à pena de prisão perpétua. Presumo que, em nossos dias, haveria uma probabilidade de Pontes Visgueiro (se considerado inimputável ou semi-imputável), medido o grau de periculosidade, receber como reprimenda o que conhecemos como medida de segurança, haja vista a ausência, em tese, de percepção neurocognitiva que leva a distúrbios de comportamento.
Mas, como se sabe, a suprema corte condenou Pontes Visgueiro à pena de prisão perpétua, posto que a legislação penal do país, naquela ocasião, não oferecia nenhuma garantia psiconormativa ao criminoso, muito menos alternativa legislativa ao órgão julgador para aplicar-lhe sanção penal diversa da mencionada na decisão proferida. Por essa razão, entendo que o mais alto tribunal do país agiu certo em condená-lo, pois a violência e hediondez do delito moveu, sobretudo, a punição aplicada na medida em que nenhuma prova, nenhum indício ou circunstância favorecia ou justificava, sob o ponto de vista legal, a ação criminosa do velho desembargador. Ao contrário, sua própria confissão espontânea e a premeditação do delito serviram de base para a condenação imposta.
Com efeito, em 1876, três anos após a consumação do homicídio de que fora vítima Maria da Conceição, o médico italiano Cesare Lombroso publicou um livro chamado “O Homem Delinquente”, que desencadeou uma verdadeira revolução nos conceitos criminológicos da época, tanto na Europa, quanto em outros quadrantes do planeta. Se, ao tempo desse horrendo crime, já existisse essa obra lombrosiana e legislação nacional específica, possivelmente o desfecho do julgamento do crime cometido por Pontes Visgueiro seria outro.
O velho magistrado teria avaliada sua insanidade mental por expertos e, caso fosse apontado algum transtorno, provavelmente, seria absolvido sumariamente pelo tribunal supremo. Ainda que, considerado inimputável e, por essa razão, fosse absolvido, a excelsa corte poderia aplicar-lhe, como sanção penal, apenas medida de segurança, haja vista sua periculosidade criminal, como medida de defesa social coletiva e prestação de assistência reabilitadora para sua cura.
Não obstante os esforços tribunicos do Dr. Franklin Dória , advogado de defesa de Pontes Visgueiro, o velho desembargador foi condenado e apenado com prisão perpétua, havendo controvérsia sobre se o mesmo morreu na prisão ou conseguiu fugir. Quanto a isto existem duas versões e muitas especulações. Considero que o mesmo morreu na prisão. Sabe-se, com certeza, apenas que perdeu o cargo, a aposentadoria e a dignidade de respeitável homem da lei e da sociedade, logo que foi preso e processado.
O grande jurista maranhense Francisco José Viveiros de Castro criticou a decisão da suprema corte e, como um simpatizante e divulgador das ideias de Lombroso aqui no Brasil, afirmou que houve um erro judiciário. Julgaram o fato e esqueceram de julgar o homem; ou seja, de conhecer o criminoso. Pontes Visgueiro conheceu a justiça; mas a justiça não o conheceu.
Sua história de vida, com as sucessivas tibiezas que experimentou, desde a infância, possivelmente lhe reservariam sanção penal mais branda ou até mesmo a absolvição, acaso fosse examinado por médico especializado nas doenças do psiquismo humano, como se verá ao longo da análise e do estudo deste caso que manchou de opróbrio a condição impoluta do judiciário maranhense na segunda metade do século XIX.
O valetudinário Pontes Visgueiro, naqueles idos tempos imperiais, tinha contra si toda a imprensa e a opinião pública da província do Maranhão. O caso é único no Brasil, e repercutiu no país inteiro, havendo jornais de circulação nacional que trataram do assunto denegrindo a imagem do desembargador assassino que, de forma satânica, tirou a vida de uma jovem mulher, de menoridade e insonte. Por essa razão, suas chances de ser absolvido eram mínimas.
Desse episódio funesto resta-nos pinçar o que interessa para conhecimento das gerações passantes e futuras, pois certas condutas criminosas que envolvem ódio e amor, ciúme e paixão, fidelidade e traição, sempre serão vistas como perturbações do espírito humano, que levarão ao banco dos réus não só o criminoso confesso, mas a própria vítima, o julgador e qualquer outra pessoa que se propuser a analisar o caso sem o devido preparo, equilíbrio e discernimento necessários para dirimir o grau de culpabilidade ou de isenção de culpa das personagens envolvidas na cena delituosa.
Nosso objetivo não é julgar Pontes Visgueiro pelos desatinos cometidos, nem apontar em Maria da Conceição defeitos e culpas, mas contar aos leitores essa triste história com o olhar do pesquisador e do jurista isento, que se preocupa em descobrir novos conhecimentos e encontrar possíveis respostas para as situações e circunstâncias que moveram a hipótese criminosa, a partir da perspectiva fática, histórica e jurídica.
O estudo da história nos proporciona conhecer como o fato ocorreu e, a partir das constatações, investigar os pormenores do episódio para confirmar sua versão, reconstruí-la, dar papéis aos personagens e, mais que isso, apresentá-lo ao público leitor com os matizes em que foi consumado, porém, atualizando-o para enquadrá-lo, como no caso presente, ao atual panorama sociocriminal, a fim de fixar como o Direito feito lei tratava a hipótese na data da sua consumação e como o sanciona em nossos dias.
Diante desse quadro, será forçoso o exame dos elementos probatórios e circunstanciais que levaram o Supremo Tribunal de Justiça (hoje STF) a condenar Pontes Visgueiro, pois é injusto afirmar que houve erro judiciário se a legislação reinante à época não oferecia outra alternativa a esse egrégio tribunal, senão aplicar ao assassino confesso a pena celular correspondente ao grau de sua culpabilidade e reprovabilidade.
Finalmente, convém esclarecer que mantivemos fielmente, no que concerne aos textos transcritos, a ortografia utilizada à época. A intenção é possibilitar o enfoque do tema, sob o ponto de vista de sua atualidade, mas com os olhos voltados para o tempo e o ambiente em que os fatos se consumaram, pois sem essa compreensão será impossível entender porque o passado e o presente estarão sempre ligados por elos indissociáveis.
A propósito, o dia 14 de agosto de 1873, data da morte de Maria da Conceição, vítima desse brutal homicídio praticado por um homem perverso, o famigerado desembargador Pontes Visgueiro, simboliza o marco da violência de gênero em solo maranhense, vale dizer, o martírio de tantas mulheres, conhecidas ou anônimas, que perderam a vida em virtude de agressões ou assassínios praticados por homens que associam a ideia de masculinidade ao sentimento de posse, domínio e propriedade sobre elas ou invocam a condição de macho ferido para lavar a honra pessoal com sangue feminino, submetendo, desse modo, a mulher, como vítima de sua fúria incontrolável, ao seu julgamento irrecorrível.
Partindo desse pressuposto, entendo que a morte de Maria da Conceição representa o marco balizador e a bandeira de luta do combate à violência de gênero e à exploração da prostituição feminina em nosso Estado, a fim de que seja evitada a incidência de conduta agressiva à integridade física ou psicológica da mulher maranhense, bem como à sua dignidade, qualquer que seja sua condição humana.
Por isso, sugiro que a data da morte de Maria da Conceição (14 de agosto) seja celebrada como o dia maranhense de combate à violência de gênero contra a mulher, com o objetivo de divulgar e intensificar as políticas públicas concernentes à eliminação desse grave problema que estimula a desigualdade de gênero e aflige a sociedade.
Minha proposta não possui cunho político algum, muito menos está ligada a qualquer grau de parentesco com alguma das partes envolvidas. Meu objetivo é unicamente estabelecer uma forma de reparação póstuma a essa infeliz menina-moça, bem como chamar a atenção dos setores envolvidos com a implementação e o estudo das políticas públicas de valorização e proteção da mulher maranhense a esse fato ocorrido na cidade de São Luís, a fim de que a data acima indicada seja instituída por lei como o dia de combate a violência de gênero contra a mulher no Estado do Maranhão”.