Trilha:
Eu tenho fome. Não a fome que se passa depois de uma macarronada com mostarda e limonada. Falo de fome que me faz estar sempre em movimento, buscando a novidade das coisas e provando as surpresas das pessoas. Eu não sou o tipo de pessoa que dá graças à gravidade. Pelo contrário, no fundo, eu queria que ela sequer existisse. É que a gravidade prende tudo ao chão, e eu sempre cultivei em mim o desejo de voar. Talvez se esse mundo fosse mais leve, as pessoas pudessem voar. Voar é sempre sinônimo de liberdade. E isso é o que mais me fascina.
Compartilhei isso com um amigo. Ele, por sua vez, falou: “eu já adoro a gravidade. Eu sou como árvore. Gosto de criar raízes e pertencer a um lugar”. Aquilo me chamou atenção, porque uma parte de mim quer exatamente isso. Mas voar ainda parece uma das melhores sensações que eu poderia sentir. Hoje, eu me peguei nesse dilema: voar ou criar raízes? Essa, sem dúvida, é uma questão que passa pelo menos uma vez na cabeça de todo ser humano. Constituir uma família ou não? Ter filhos ou não? Mudar de cidade? Cursar que faculdade? Essas e outras dúvidas estão intimamente ligadas à decisão sobre ser árvore ou ave.
Foi no tédio de um domingo ocioso que conheci Sterna paradisuea, o trinta-réis-ártico. Uma pequena ave que migra do Círculo Polar Ártico até o limite do Antártico, em apenas nove meses. Essa ave tem a invejável capacidade de viver conhecendo diversas paisagens, diferentes lugares e saboreando as surpresas agradáveis (algumas nem tão agradáveis que essa jornada pode oferecer). E quer saber? Assumir riscos é uma forma sadia de se sentir vivo. É esse frio na barriga, que vem com as grandes aventuras, que aquece nosso coração e nos dá a certeza de que estamos realmente vivos.
Toda essa migração é justificada pela necessidade de buscar climas mais confortáveis. Ela não quer ganhar o mundo e voar pelos quatro cantos só por seu bel prazer. É muito além disso: está em seu DNA a necessidade de voar. Não pense que há um voo solitário e uma vida perdulária. Há, sim, parceiros de jornadas que não a esperam retornar. Eles voam juntos. O trinta-réis-ártico é a prova de que a felicidade está no caminho. Ela nos ensina que não precisamos fincar raízes em um só lugar para chamá-lo de nosso. Essas aves possuem laços tão extensos quanto a necessidade das mesmas de voar. Possuem raízes tão fortes quanto qualquer árvore. Porque o nosso lugar não é onde a gente fica e sim, o que a gente está.
#DQ183 #espalheamorporaí <3