Trilha:
Pela fresta da janela, a gente percebe o casal se vestir, escondendo-se da noite gélida e silenciosa. É alguma hora da madrugada, em que se acorda com aquela fome que tira qualquer sono. O casal se move, tentando prolongar a posição de conforto, que tanto deu trabalho pra se encontrar. A fome aperta e não há como remediar: é hora de despertar. O homem é o primeiro a levantar. Sentado, ele busca um contato, talvez tentando, em vão, companhia. A mulher, virada, evita qualquer contato. Deve ser um sono muito bom esse.
A mulher, agora sozinha, debruça o choro espremido, que esconde amiúde todas as noites. Há tempos, observo essa cena se repetir. Eles se deitam o mais longe que seja possível. Recolhem-se todas as noites, no leito do luto das relações moribundas. E quem dera que essa fome fosse dessas, que se sentem no intervalo de uma refeição ou outra. A fome é mero adereço figurativo. Ela firula, como diria, um escritor mais objetivo. Fome é qualquer traço que atavie a despedida. É pretexto pretenso que se faz, quando a realidade é cruel demais pra se encarar.
Ela seca as lágrimas com as costas da mão. Ele volta depois que a noite se foi. Ela evita perguntar como foi o dia. E o silêncio fúnebre das relações mórbidas aturde a casa. O tic-tac do relógio mais parece um monitor cardíaco que, a cada segundo, fica mais perto do fim. Às vezes, penso ser isso tudo fantasia de um velho solitário, que resolveu assuntar a vida alheia pela janela desse apartamento. Mas quem dera que fosse invenção ou devaneio! A verdade bate em mim e percebo que não há fresta, tampouco janela. Há um espelho sujo, refletindo com nitidez um passado que não passa. Um pesadelo que não cessa. De um tempo que me depressa. Pelo seu tom sempre agudo e ritmo mordaz.
#DQ153 #Espalheamorporaí <3