Trilha:
De frente para o espelho, eu olho mais que meu reflexo. Vejo as feridas na alma, uma marca indelével. Uma lágrima cai, deixando essa cena um clichê comovente. Essa sou eu, numa versão menos alegre e bem mais carente. Você chega. Põe a mão sob meu ombro. E me vira como quem quer ver meu rosto. Poderia ver meu reflexo, mas até você já percebe que não venho refletindo uma imagem boa. É nítido tanto para o espelho, quanto pra você (ou pra qualquer um), que já não sou mais a mesma e que preciso deixar você. Mas decidir entre o que se quer e o que precisa é mais difícil do que se imagina.
Viro-me com certa resistência, tentando evitar qualquer confronto de olhar que me force começar a nossa última conversa. Você me beija os lábios, como quem aperta as mãos de colegas no trabalho. É um carinho fraterno, mas não no sentido positivo que isso possa ser interpretado. Você se afasta, e eu retorno para o espelho. Novamente de frente, percebo o que está em minha volta. O porta-retrato com uma foto com filtro em preto e branco traz a nostalgia de algum momento em que já fomos felizes. Não é que eu não me lembre de nossos melhores momentos, mas é que eu mal me reconheço naquele sorriso, naquela foto — ou seria naquela vida?
Está tudo em ordem no quarto. Móveis no lugar. Lençóis milimetricamente dobrados. Toalhas em seus devidos lugares. Mas o vazio de uma casa sem bagunça é desolador. Falta vida entre essas paredes. Falta o caos natural e necessário sobre o qual as relações amorosas costumam se deitar. Falta a briga por banalidades. E falta, num súbito momento, a racionalidade fazer, de qualquer cômodo, palco pra alguma façanha amorosa. Falta tanta coisa de ontem, da época em que éramos menos corretos e mais felizes. É a falta das coisas de ontem que me impede de continuar hoje, mesmo sabendo que sofrerei ainda mais amanhã.