Natalino Salgado Filho*
Uma notícia surpreendente para nossa tão decantada cultura da alegria, da amizade fácil, da hospitalidade. Embora, lamentavelmente, a grave crise de segurança obscureça o mito do brasileiro receptivo e acolhedor, a notícia a que me refiro tem como fonte a criação de uma Secretaria de Estado para tratar da solidão, na Inglaterra. Uma pesquisa recente constatou: há 9 milhões de pessoas solitárias naquele país. A mesma pesquisa atestou que cerca de 200 mil pessoas deste grupo teria passado um mês inteiro sem falar de forma amigável com qualquer pessoa.
A maioria dos solitários se constitui de idosos com mais de 75 anos. Em toda Europa pessoas nesta condição têm falecido sozinhas e, às vezes, passados alguns anos, literalmente, ninguém deu conta do falecimento. Correspondências continuaram sendo entregues, aluguéis descontados no débito em conta das aposentadorias que continuaram sendo pagas. Algumas dessas pessoas mumificaram dentro de casa. Uma tragédia.
O fenômeno é grave entre os idosos, mas atinge jovens também. A maioria das pessoas tem vínculos ocasionais e funcionais e as amizades virtuais não dão conta de suprir esta carência. E solidão demais adoece. Inúmeros artigos científicos abordam a questão e atestam: solidão pode ser precursora de depressão, ansiedade, estresse, doenças cardíacas etc.
O convívio que a amizade propicia, por sua vez, produz saúde. Somos seres relacionais. John Donne, poeta inglês do séc. XVII, diz em suas meditações: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano.”
Vinícius de Moraes no Soneto do Amigo diz: “O amigo: um ser que a vida não explica / Que só se vai ao ver outro nascer / E o espelho de minha alma multiplica…” Sim, somos multiplicados, expandidos com as amizades. Crescemos e alimentamos nossa necessidade de aceitação e aprovação. Amizade ventila e ilumina todo o ambiente da casa que somos. Ter amizade é compartilhar a vida, caminhar juntos. É nunca se sentir só ou se a solidão bater à porta, convidar o amigo para sentar um momento e ser ouvido, acalentado as dores que todos carregamos e com as quais às vezes fica mais difícil de lidar.
Carlos Drummond de Andrade disse que “A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade, cultivando algumas pessoas.” A ideia é bela, pois quem cultiva precisa de paciência, exerce cuidado e zelo com a planta. Vigia os insetos destrutivos. Afofa a terra do coração. Rega as raízes. Tudo isso produz frutos de vida com saúde por dentro e por fora.
A certa altura, nos evangelhos, Jesus disse que não chamaria mais os discípulos de servos. Ele os chamaria dali em diante de amigos. E dá a explicação para a mudança: “Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor; mas Eu vos tenho chamado amigos, pois tudo o que ouvi de meu Pai, Eu compartilhei convosco”. Intimidade, Confiança, Companheirismo e Lealdade, características que lembramos através dessa fala do Mestre, tão atual em épocas de instantaneidade, em que os amigos virtuais se multiplicam e as relações humanas são escassas. Conforme disse o compositor Milton Nascimento, em Canção da América, “Amigo é coisa pra se guardar/ no lado esquerdo do peito.” Cultivar os amigos, eis que nisto consiste a riqueza do ser humano.
* Médico, doutor em Nefrologia, ex-reitor da UFMA, membro da ANM, da AML, da AMM, Sobrames e do IHGMA