Por Marlon Botão*
A essa altura, é difícil dizer algo novo sobre ‘Ainda Estou Aqui’, o belo filme de Walter Salles que conta a trágica história da família Rubens Paiva. É um filme com muitos méritos: lotou as salas de cinema em todo o País, resgatou o orgulho da população pelo cinema nacional e mostrou ao mundo a potência da nossa arte.
Mas não é isso que faz de ‘Ainda Estou Aqui’ uma das obras brasileiras mais importantes das últimas décadas – e certamente a mais importante da década atual. O filme é necessário por nos lembrar, a partir da dor de uma única família, os horrores do autoritarismo, do desprezo à democracia e aos direitos humanos.
Foi o autoritarismo, cada vez mais banalizado nos dias de hoje, que levou o Estado brasileiro a sequestrar, torturar e assassinar de forma brutal o ex-deputado Rubens Paiva em janeiro de 1971. Foi o desprezo à democracia e aos direitos humanos que transformou, naqueles sombrios anos de ditadura civil-militar, torturas e assassinatos em políticas de Estado – ainda que não admitidas por seus covardes agentes.
Neste momento, em que políticos populistas regurgitam – aqui dentro e lá fora – bravatas autoritárias, o grande mérito de ‘Ainda Estou Aqui’ é manter viva a memória desses horrores, para que possamos garantir que eles nunca mais se repitam ou sejam relativizados. O grande mérito é mostrar às novas gerações, aos jovens que estão prestes a exercer pela primeira vez a sua cidadania por meio do voto, que quem defende ou relativiza a ditadura, quem levanta cartaz pedindo o fechamento do STF ou o retorno dos militares, está defendendo crimes torpes como os que vitimaram o ex-deputado Rubens Paiva, o jornalista Vladimir Herzog, o estudante Stuart Angel e tantos outros brasileiros e brasileiras – que tiveram suas famílias destroçadas por se levantarem contra a barbárie da ditadura civil-militar.
No tocante livro que inspirou o filme de Walter Salles, o escritor Marcelo Rubens Paiva – filho de Rubens Paiva – conta que anos depois da morte do pai, um amigo de faculdade, que dizia ter ligações com justiceiros, lhe propôs vingança. “Nem aventei essa possibilidade. A redemocratização será a morte deles”, relata. Marcelo também afirma que não considera o assassinato de Rubens Paiva como um crime contra a sua família, mas contra o Brasil. Contra
todos os brasileiros.
E ele está certo.
Nascido na década de 1960, na periferia de São Luís, também senti na pele a opressão da ditadura, principalmente na condição de vida muito difícil que levávamos – ainda que, menino como era, não entendesse verdadeiramente o tamanho daquele nosso abismo. Mas estou certo de que essa experiência de menino foi fundamental para a minha formação política, nas lutas estudantis, na greve da meia passagem, em 1979, e em todas as lutas que travei desde então.
Me identifico com a história de ‘Ainda Estou Aqui’ porque ela também é minha. As sevícias sofridas por Rubens Paiva, Herzog, Mariguella e tantos outros também feriram a pele de todos os brasileiros e brasileiras que defendem a democracia e os direitos humanos.
Que o impacto do filme seja combustível para fortalecer a nossa luta, cada vez mais necessária, pela democracia. Que as forças progressistas se unam contra o ódio, o preconceito e o autoritarismo de líderes do século 21. Que juntos possamos construir um futuro melhor, mais justo e democrático para todos. E que fique claro, aos que ainda defendem o indefensável, que a luta de brasileiros como Rubens Paiva não foi em vão.
Porque ainda estamos aqui.
*Líder político e militante há mais de 40 anos.