Por Arnaldo Gomes*
O país do futebol, em que tudo acaba em samba e muitas vezes em “pizza”, vive um momento “mágico-real”, e a certeza dos desmandos de outrora – que antes contavam com a complacência das massas e sua degradante sonolência – cede espaço, agora, a manifestações e protestos organizados pela juventude em centenas de cidades brasileiras.
A aceitação passiva das massas ganhava corpo no Brasil e acomodava-se em nome da tão famigerada estabilidade econômica. Era preciso mostrar ao mundo que “o Brasil é um país viável e sem riscos para investidores estrangeiros”. Por outro lado, o circo do futebol fortalecia a ideia de que precisávamos construir ou reformar estádios em todo o país para sediarmos a copa de 2014. Deveríamos exibir a pungência futebolística brasileira simbolicamente expressa em dribles e espetáculos gigantescos capazes de demostrar aos olhos do mundo a força da brasilidade entre as quatro linhas.
Este era o aspecto simbólico que ocultava, todavia, o que estava por trás das câmeras, nas obras (segundo denuncias) superfaturadas e nos interesses escusos de empreiteiras motivadas por verbas estratosféricas, no valor de 28 bilhões de reais.
Tão propício quanto o circo, para completá-lo com lances cavalares de alienação, seria o pão. Mas o brasileiro fugiu ao binômio “pão e circo” e foi às ruas protestar por mais saúde, educação, segurança pública, pelo fim da corrupção e pela diminuição das tarifas dos transportes públicos. Ressalte-se, no entanto, que este último ponto foi apenas o estopim de uma situação insuportável: a omissão do Estado brasileiro quanto à promoção de políticas públicas que proporcionem qualidade de vida e promovam a cidadania. Diante da rebeldia com causa do povo brasileiro, nem mesmo o circo da bola, com sua magia, foi capaz de driblar a realidade. E, numa analogia critica, faixas e cartazes passam a exigir escolas e hospitais com “o padrão FIFA”.
Não se pretende com isso desconsiderar a importância do futebol e sua influência cultural para o brasileiro. Sabe-se que o futebol tem uma relação muito próxima com o gingado, com a dança, com as habilidades expressivas do corpo e daí, portanto, a forte vivência de nossa gente com este esporte. A obra “Raízes do Brasil”, de Sergio Buarque de Holanda, aponta como as manifestações artísticas se fazem sentir com bastante intensidade num país resultante da forte miscigenação racial como a nossa. Não há dúvidas: o futebol é uma arte aprazível aos olhos do brasileiro.
Não nos causaria espanto, porém, afirmar que uma motivação de natureza psicológica também justifica a paixão do brasileiro pelo futebol e sua quase cegueira secular face aos problemas do país. É que, na ausência de políticas inclusivas no Brasil, a grande massa tornou-se excluída econômica e socialmente. E depois de uma semana de trabalho e dificuldades para driblar o cotidiano, o brasileiro vai aos estádios e espera marcar, no plano da fantasia do futebol, os gols que não consegue fazer nos lances da vida real. Durante noventa minutos o inconsciente coletivo é abastecido pelo alimento fantástico da ilusão: seja nos estádios, seja em casa, via televisão – direcionada não a promover o espetáculo em si –, mas também a atender à grande jogada de empresas e anunciantes e, não raro, a interesses de cartolas.
Desta forma, a ilusão transfigura a realidade e a dificuldade se traveste em fantasia, com “gols de placa” e apoteoses de alegria. Foi assim que durante tantas vezes a nossa pátria mãe gentil dormiu um sono profundo e não percebeu que, enquanto dormia, era subtraída em tenebrosas transações. Talvez estejamos, agora, amadurecendo a nossa cidadania. Acreditamos que nada será como antes. E preferimos ratificar a dialética afirmada pelo filósofo Heráclito, séculos antes de Cristo: “o homem não toma banho duas vezes no mesmo rio da mesma maneira”. É bom lembrar o que dizia o velho Marx “a história não se repete a não ser em forma de farsa.
Aproveitemos – agora – a oportunidade de construirmos a mudança e não nos acomodemos com a certeza de que findado o crepúsculo, surgirá a aurora. Pois o exercício da cidadania exige participação. Afinal, só se aprende a caminhar, caminhando! Não conheço nenhum grande nadador que se tornou campeão apenas lendo um manual de natação. É preciso mergulhar na piscina, como é preciso lutar, transformar, ir às ruas.
É assim que a doce utopia da brava juventude brasileira deixará de ser, até mesmo aos olhares mais reacionários, simples quimera e se transformará na energia de ativação capaz de mobilizar multidões e tirar da hibernação a força revolucionária do povo brasileiro, libertando-o da latência, da letargia e da miopia acomodadoras de outrora.
Salve o povo brasileiro! Salve a nossa juventude! Vamos às ruas!
*Arnaldo Gomes de Sousa
Professor de Língua Portuguesa e acadêmico dos últimos períodos do Curso de Direito