O desaparecimento do Gomes de Sousa

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Dias atrás, o Governo do Estado e a Prefeitura Municipal de Itapecuru-Mirim assinaram um termo de cooperação técnica e financeira com vistas à municipalização do ensino fundamental.

Pelo convênio, o governo transferiu ao município a gestão de imóveis, matrículas de alunos e recursos financeiros para a manutenção das escolas que faziam parte de sua estrutura organizacional.

No bojo desse convênio, uma triste notícia para os itapecuruenses: o desaparecimento do Grupo Escolar Gomes de Sousa, que ao longo de oitenta anos, prestou inestimáveis e relevantes serviços à comunidade, educando numerosas gerações e possibilitando o ingresso de dezenas de alunos em estabelecimentos de nível médio e superior de onde saíram qualificados para o mercado de trabalho.

Para quem nasceu e viveu em Itapecuru, o triste fim dado àquela tradicional unidade escolar foi inesperado, brutal e injustificável, ainda que o Governo do Estado e a Prefeitura procurem explicá-lo como uma iniciativa benéfica para a gestão dos negócios educacionais.

Ao tomar conhecimento da decisão que culminaria na eutanásia do Grupo Escolar Gomes de Sousa um sentimento de revolta e de inconformismo apoderou-se de mim, a ponto de levar-me à Secretaria de Educação do Estado, onde além de registrar repúdio ao convênio, também, ofereci alternativas para salvar aquela importante unidade de ensino.

De nada adiantaram os meus argumentos como filho de uma cidade que se orgulhava de contar com um dos mais importantes estabelecimentos de ensino do interior do Estado do Maranhão, onde estudaram figuras humanas que se tornaram importantes em diversas atividades do setor público ou privado.

Para mim, o desaparecimento do Grupo Escolar Gomes de Sousa representa um terrível golpe, que não sei como superá-lo diante do significado que teve na minha formação educacional e de ser concluído e inaugurado pelo meu saudoso pai – Abdala Buzar Neto, quando exerceu o cargo de prefeito nos idos de 1946.

Registra o Diário Oficial do Estado do Maranhão que o Grupo Escolar Gomes de Sousa passou a ter vida legal em Itapecuru em junho de 1933, por iniciativa do coronel-comandante do 24º Batalhão de Caçadores, Álvaro Jansen Serra de Lima, que, na interinidade do cargo de interventor federal, assinou o decreto nº 457, transferindo-o da cidade de Carolina para a de Itapecuru, com base na proposta da diretoria-geral da Instrução Pública estadual.

Por falta de prédio próprio, o então prefeito de Itapecuru, José Paulo Pinheiro Bogéa (meu avô), conseguiu, como solução provisória, que o “coronel” Bento Nogueira da Cruz cedesse uma casa de sua propriedade, ampla e com muitas salas, localizada na antiga Rua da Passagem, mais tarde transformada na Avenida Gomes de Sousa, para ali instalar o Grupo Escolar.                   

Com o passar dos anos, a casa onde funcionava o Grupo Escolar, em função do crescente número de matrículas, tornou-se inadequado, limitado e sem condições de atender à demanda do alunado.

As professoras, todas normalistas, e a comunidade começaram a pressionar e a reivindicar dos prefeitos ações junto ao governo do Estado, objetivando a construção na cidade de um prédio próprio e ajustado à nova realidade educacional do município.

Em 1943, na gestão de Bernardo de Matos, a prefeitura conseguiu do interventor Paulo Ramos recursos para a viabilização do projeto que dotaria a cidade de um prédio moderno onde o processo ensino-aprendizagem pudesse apresentar melhor rendimento.

Mas, em outubro de 1945,  por causa da implosão do Estado Novo, da renúncia do interventor Paulo Ramos e da demissão do prefeito Bernardo de Matos, a construção do Grupo Escolar foi interrompida.

A reativação da obra deu-se com a implantação do governo de transição, que conduziu o empresário Saturnino Belo à interventoria do Maranhão, e o comerciante Abdala Buzar à prefeitura de Itapecuru.

Para não frustrar a comunidade e não deixar que a obra caísse no esquecimento, o prefeito Abdala Buzar conseguiu do interventor a liberação de recursos suficientes para a conclusão do Grupo Escolar Gomes de Sousa, que, depois de sete meses de intenso e acelerado trabalho, nos meados de novembro de 1946, foi festivamente inaugurado.

Como se não bastasse esse fato, auspicioso e emblemático para este escriba, guardo na memória esta singela singularidade: nele fui alfabetizado e estudei os cinco anos do curso primário.

Com orgulho e honra, proclamo em alto e bom som, que fiz parte das primeiras turmas do novo colégio, onde pontificavam professoras competentes e dedicadas, que se entregavam de corpo e alma ao ofício sublime do magistério.

Mestras do quilate de Maria Celestina Nogueira da Cruz (Celé), Anozilda dos Santos Fonseca (Santinha), Teotônia Sanches Ewerton (Tusa), Maria das Dores Tavares (Sinhá) e outras marcaram não só a minha vida, mas também a de numerosos colegas de geração, que delas receberam lições e exemplos edificantes e serviram de balizamento para a nossa formação humana, ética e profissional.        

O ensino adotado e transmitido pelas professoras do Grupo Escolar Gomes de Sousa era de tal modo completo, fecundo e rico que dava ao alunado base suficiente para aprovação nos exames de admissão ao curso ginasial em qualquer colégio de São Luís.

Eu, por exemplo, em 1950, à falta de ensino secundário em Itapecuru, fui levado a São Luís para fazer o exame de admissão ao ginásio no Colégio dos Irmãos Maristas.

Passei direto e bem classificado em razão primordialmente do excelente curso primário ministrado no Grupo Escolar Gomes de Sousa, ao qual devo boa parte do meu sucesso profissional e intelectual, pois nele vivenciei atos e condutas exemplares e aprendi lições de vida que forjaram a minha personalidade.

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A Semana Santa em Itapecuru

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Em Itapecuru, os atos da liturgia católica, que marcavam o período da Semana Santa, começavam com a tradicional missa da Quarta-Feira de Cinzas, quando o povo era despertado pelos sinos da igreja de Nossa Senhora das Dores, convocando-o para a purificação da alma e o perdão a Deus pelos excessos cometidos no reinado de Momo.

Por volta das 6 horas, o vigário da época (padre Alfredo Bacelar, Alteredo Soeiro ou José Albino Campos) devidamente paramentado se dirigia para o altar-mor da igreja, onde ministrava a cerimônia litúrgica. Ao final da celebração, os fiéis, contritos e arrependidos, deixavam a igreja levando na testa a marca do sinal da cruz feita de cinzas. Era o prenúncio da quaresma, em que os católicos se preparavam para acompanhar e sentir em toda a plenitude a Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo.

Quaresma significa quarenta dias, tempo intenso para a prática dos ofícios cristãos – missas, rezas, ladainhas, vias-sacras, adorações e vigílias, ministradas pelo vigário da paróquia, que, com ajuda das corporações religiosas – as Filhas de Maria e os Vicentinos, prestavam assistência espiritual à comunidade e montavam o cenário onde as imagens dos santos, protegidas por um manto roxo, traduziam a dor e o sofrimento de Cristo.

Pelo calendário da quaresma, após a Missa de Cinzas, vinha o Domingo de Ramos, cuja celebração carregava um simbolismo especial: a triunfal entrada de Jesus Cristo em Jerusalém, como Rei dos Judeus, ato que exigia missa cantada e rezada em latim, com a participação da banda de música local.

Ao final da cerimônia religiosa, cada católico se dirigia ao altar-mor, onde os coroinhas entregavam pequenos ramos de palmeira.

Durante a Semana Santa, os itapecuruenses, com fervor, cumpriam as recomendações ditadas pelos cânones do catolicismo e consolidadas pela tradição, que exigiam dos fiéis sacrifícios materiais e espirituais, tais como: não consumir  carne vermelha, só frango e peixe; não ingerir bebidas alcoólicas; não participar de festividades ou eventos que comprometessem o sentimento religioso; impor-se ao império do silêncio; evitar roupas extravagantes ou excessivamente coloridas; optando pela indumentária discreta;  praticar o jejum na Sexta-Feira da Paixão, sem esquecer as penitências, como forma de remissão dos pecados.

Com respeito aos atos litúrgicos realizados no interior da Casa de Deus, alguns ocorriam durante o dia, outros ao longo da noite. Uma cerimônia se destacava pelo significado emblemático: o Lava-Pés, na Quinta-Feira Santa, com o sacerdote lavando e beijando os pés de doze jovens, que, de vestimentas brancas, representavam os apóstolos.

O Lava-Pés revestia-se de singularidade especial e até hoje não consigo esquecê-lo. Eu, meu irmão Raimundo, Nonato Cassas, Wady Fiquene Filho e José Raimundo Cardoso dentre outros, enquanto adolescentes, éramos sempre convocados para figurar naquele ritual, vivido sob forte dose de emoção.

Mas estava reservado para a Sexta-Feira da Paixão o dia mais comovente da Semana Santa. A tristeza invadia a cidade e contaminava católicos ou não. Pairava no ar o sentimento da melancolia e da tristeza. O ambiente tétrico impunha-se em toda plenitude e conduzia à reflexão em torno do martírio de Cristo.

O ponto culminante desse dia ocorria por volta das 5 horas da tarde, com a participação da multidão na procissão do Senhor Morto, que percorria as principais ruas da cidade. De vez em quando a procissão parava. Rompia-se o silêncio e os olhos e os ouvidos dos fiéis se voltavam para duas figuras humanas: o sacristão, que conduzia à mão uma engenhoca chamada de matraca, substituta do sino e produzia um som suave e adequado ao ritual; e a Verônica, representada e interpretada por moças da sociedade itapecuruense: Petinha Buzar, as irmãs Nazete, Darcy e Socorro Fonseca, e Idalina Cardoso.

Rezava o ritual que Verônica ficasse em posição de destaque para que todos pudessem vê-la e ouvi-la. Autêntica cena de teatro a céu aberto, que se repetia por diversas vezes em pontos estratégicos da cidade e causava emoção, porque ela cantava músicas sacras e mostrava um manto com a imagem de Cristo. Nesse instante, o silêncio dava lugar às palmas.

Acabada a encenação bíblica, a procissão voltava ao seu curso normal e os fiéis entoavam cânticos religiosos. Cumprido o roteiro, o povo se aglomerava na nave  da igreja e rente ao caixão fúnebre rezava e fazia reflexões sobre o
padecimento do filho de Deus.

Para os católicos, a Semana Santa não acabava com a procissão do Senhor Morto. O Sábado da Aleluia e o Domingo de Páscoa anunciavam tempos em que a tristeza cedia lugar à alegria. Além das comemorações alusivas à Ressurreição do Salvador, pontificavam as manifestações profanas, tendo como alvo a figura bíblica de Judas, estigmatizada pelo seu comportamento indigno e de traidor. A cidade amanhecia com os Judas da vida, sob a forma de caricatos bonecos, pendurados em postes, alguns bem arrumados, outros desengonçados e mal confeccionados, para os quais convergia a sanha popular, que não os poupava da malhação ou da queimação.

Fixados nas áreas mais movimentadas da cidade, preferencialmente na Praça da Cruz, onde ficavam expostos à curiosidade do povo. O espetáculo do massacre, assistido e aplaudido pela comunidade, realizava-se ao som da banda musical e sob intenso foguetório.

Antes da morte anunciada do Judas, as atenções se voltavam para o testamento, por meio do qual o traidor deixava às autoridades e pessoas influentes da cidade, heranças benditas ou malditas. Escritos com pitadas de humor e de ironia, os testamentos causavam hilaridade, mas também provocavam insatisfações aos que não estavam acostumados com aquele tipo de brincadeira.

O encerramento da Semana Santa ocorria com a celebração da Ressurreição. A igreja se engalanava e os itapecuruenses, com fé e devoção, participavam da gloriosa missa, ministrada com pompa pelo sacerdote, que a celebrava em latim, ainda que ninguém a entendesse.

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