Lisiane, a segunda filha de Deonila e Abdala Buzar, nasceu em Itapecuru-Mirim a 20 de fevereiro. À sua frente, apenas eu. Depois dela, mais seis, pela ordem de nascimento, Raimundo, João Batista (já falecido), Maria Célia, Jorge, Amélia e Lélia.
Eu e ela, por sermos os primeiros de um batalhão de oito irmãos, usufruímos um privilégio que os nascidos depois de nós não tiveram.
A partir dos primeiros dias de vida, eu, por ser o primeiro da fila, vi-me envolvido pelos afagos de Rafiza e João Buzar, os avós paternos. Tudo fizeram por mim e sem esconder de ninguém. Como neto preferido, tive o direito de receber carinho, benesses e bens patrimoniais, alguns, transferidos ainda em vida para o meu nome.
Lise, a segunda da fila, também, foi alvo de desvelo e da preferência de avós maternos, Neuza e José Paulo Pinheiro Bogéa. Encantaram-se de tal modo por ela, que fizeram questão de levá-la para o convívio deles.
Lise, portanto, foi uma criança criada à parte e de modo diferente dos irmãos. Ainda que a gente morasse na mesma cidade e fosse da mesma família, a criação dela foi marcada por uma linha bem distinta. Seus gostos e vontades nunca deixaram de ser atendidos.
No tocante à educação, por exemplo, ela começou a estudar em São Luis antes de todos nós. No internato do Colégio de Santa Tereza, época em que o estabelecimento era privativo de gente rica, passou bons anos. Ao sair do internato, morou na casa do tio e médico Paulo Bogéa, que dava a ela e à filha, Maria Paulo, severa orientação moral, espiritual e educacional.
Lise, na infância e boa parte da adolescência, por viver mais em São Luis do que em Itapecuru, teve pouca convivência com os irmãos e os pais verdadeiros. Essa situação perdurou até quando a avó, Neuza, veio a falecer, vítima de ataque cardíaco. A neta sofreu como nunca.
A morte inesperada da avó, que chamava de mãe, e com quem aprendeu prendas domésticas e a cozinhar divinamente, alterou completamente a sua vida. Depois de muita relutância, o avô paterno, afinal, concordou entregá-la aos pais, Deonilla e Abdala, que a receberam de braços abertos e efusivamente. Com os irmãos, relacionou-se rapidamente e sem constrangimento. Na nova família só estranhou a falta de certas bonomias, que só avô e avó são capazes de oferecer.
Não lembro o ano de seu retorno ao nosso convívio, mas sei que ocorreu sem traumas, o que facilitou a sua adaptação ao novo lar. O sangue dela era igual ao nosso, por isso, a nossa reaproximação foi integral e em harmonia.
Na sua volta, identificou-se imediatamente com o espírito festeiro e alegre do nosso pai, Abdala. Era a primeira a se apresentar para acompanhá-lo nas brincadeiras de carnaval de rua, quando ele se fantasiava para jogar talco nas pessoas.
Esse seu lado festeiro, dava ensejo aos organizadores da Festa do Divino Espírito Santo a convidá-la, todos os anos, para encarnar a figura da Imperatriz. Ao lado do Imperador, ambos vestidos a caráter, saiam pelas ruas da cidade, acompanhados de orquestra e das caixeiras, à cata de donativos e jóias para os leilões noturnos.
Lise só começa mudar a rotina de menina-moça quando encontra um namorado que pensa ser o homem ideal de sua vida e com o qual noiva, casa e tem três filhos, Evandro, Marcus Aurélius e Neusa. Depois de certo tempo de casada, a união entra em crise e ingressa numa fase que só a separação dos corpos resolve o problema do casal.
Solteira, com o passar dos anos, torna-se funcionária da Secretaria de Educação Municipal e depois de longo e exaustivo trabalho, aposenta-se. Pela dedicação à atividade, retorna ao lugar de origem, onde fica até adoecer. Nesse tempo, trava conhecimento com uma pessoa generosa e retilínea, chamada Orlando, do qual se torna companheiro durante 30 anos.
Novamente casada, surge o inesperado. Ela, que era uma fortaleza de saúde, sem aviso prévio, é atacada por um câncer de forma traiçoeira. Mas não se deixa abater, vai à luta e consegue, após penoso tratamento, dar a volta por cima, mercê de sua pertinácia e coragem.
O seu sorriso largo, depois de derrotar o câncer, localizado na região intestinal, volta a espargir-se pelo seu rosto, na suposição de que nunca mais seria molestada pela insidiosa doença.
Ledo engano. Nos primeiros meses de 2015, os sintomas da perigosa doença ameaçam novamente atacá-la, a despeito dos cuidados e das alertas. Tentamos reanimá-la e a persuadi-la de que o infame câncer já fora consumido pelo tempo. Médicos são procurados e exames são realizados, com vistas ao encontro do diagnóstico.
Lamentavelmente, o diagnóstico foi implacável. Após nove anos, a doença retorna e com mais crueldade. Viaja para São Paulo, onde o filho, Marcus Aurelius, comandante da TAM, a interna no Hospital Sírio-Libanês para os procedimentos de rotina. O resultado não discrepa do obtido em São Luis e a recomendação médica era uma só e urgente: submeter-se-ia às sessões quinzenais de quimioterapia, desta feita, mais rigorosa, porque o carcinoma avançara de forma avassaladora.
Em São Luis, Lise suporta apenas duas aplicações de quimioterapia, ambas violentas, no Hospital Aldenora Belo, que lhe empresta toda a assistência médica e hospitalar possível, mas, infelizmente, sem sucesso, haja vista a deflagração de uma infecção generalizada, cientificamente chamada sepsemia.
Foram dias terríveis e dramáticos para ela e para nós. Indefesa e só com as armas da fé ela lutava na crença de que os médicos e enfermeiros, que a acompanhavam dia e noite, pudessem livrá-la daquele deplorável quadro de desespero e de aflição
Com o passar dos dias, as esperanças foram se diluindo, pois nada dava certo para reabilitá-la. Seu definhamento era visível e não deixava margem de que o pior estava por vir. A sua via crucis acaba depois de 14 dias de internação. Às 15 horas e 15 minutos, de 22 de agosto de 2015, aquela brava mulher chegava ao fim da vida, ela, que passou por vários reveses, mas sem nunca perder a alegria, sua inseparável marca registrada.
Lise partiu para a eternidade, mas ao longo de seu padecimento, sempre contou com a solidariedade, o carinho, o afeto e a assistência do esposo, filhos, irmãos, netos, bisnetos, sobrinhos, cunhados e amigos, que, jamais vão esquecê-la, sobretudo da alegria de sua alma, que se estampava no seu rosto pelo imenso sorriso, que emanava de um coração tão ardente quanto bondoso.